E se o lugar de fala tomasse forma dentro de um ônibus?
Em meio aos balanços diários da cidade, aos olhares apressados e aos corpos espremidos, uma mulher negra em cadeira de rodas dá o sinal mas o motorista não para. Parece só mais uma cena banal da rotina urbana. Mas ali nasce um grito. Uma denúncia poética. Um espetáculo.
Assim se inicia “A (Ré)tomada da Palavra ou A Mulher que Não se Vê”, nova criação da companhia Zózima Trupe, que transforma o transporte público em um espaço de arte, denúncia e reexistência. O grupo, que há 18 anos ocupa ônibus como palco, desta vez propõe um mergulho profundo nas camadas da invisibilidade que atravessam o corpo da mulher preta com deficiência.
A mulher que não se vê, mas que sempre esteve lá
A história gira em torno de Rosa interpretada com potência por Ma Devi Murti uma passageira observadora, limpadora de dores e injustiças, que insiste para que o ônibus pare para outra mulher: uma mulher negra em cadeira de rodas. Ao descer para ajudar… apenas uma cadeira vazia. O incômodo se instala. Quem viu essa mulher? Quem reparou nela?

“Só a protagonista enxerga essa mulher e começa a perguntar sobre sua vida. Criamos a imagem de um navio negreiro, porque muitas pessoas veem o ônibus como uma versão contemporânea desse espaço opressor”, afirma o diretor Anderson Maurício.
O ônibus como navio, o palco como resistência é Inspirado na trajetória da ativista e artista Flávia Diniz (1983–2024), mulher preta, com deficiência, mãe solo e LGBTQIAP+, o espetáculo é um manifesto sensível e radical. Uma convocação urgente para rever o transporte, o corpo e os silêncios que a sociedade insiste em manter. Ao mesmo tempo, reverência Rosa Parks, que em 1955 se recusou a ceder seu lugar a um homem branco em Montgomery, mudando a história dos direitos civis nos EUA.

Como diz o próprio grupo, essa montagem é um grito coletivo em forma de poesia crua, onde o ônibus, que tantas vezes só carrega invisibilidades, agora se torna veículo de presença, de voz, de memória.
De onde se fala? Do chão de quem vive
Com dramaturgia assinada por Shaira Mana Josy e Piê Souza, direção sensível de Anderson Maurício e acompanhamento musical de Victória dos Santos e Aworonke Lima, o espetáculo ecoa as feridas abertas da cidade: o racismo, o capacitismo, o machismo, a pobreza e a brutalidade do sistema. Mas também transborda a potência das pequenas revoluções.

“Uma mulher, sozinha, no cotidiano, se insurge contra a ordem vigente. E isso transforma tudo. Nem sempre é preciso multidão. Às vezes, uma fagulha já acende a mudança”, diz o diretor.
Um teatro que provoca, acolhe e amplia
A temporada gratuita percorre três espaços de São Paulo: Terminal Parque Dom Pedro II, Praça das Artes e Praça Franklin Roosevelt, de julho a setembro de 2025. Com mais de 30 apresentações, todas dentro de um ônibus real, o espetáculo dialoga diretamente com o povo com quem sobe e desce da vida todos os dias pela porta da frente ou, muitas vezes, pela lateral da exclusão.

Além disso, a experiência é ampliada por rodas de conversa no Espaço Cultural Adebanke, em Artur Alvim, onde temas como corpo, deficiência, maternidade, negritude e prazeres silenciados se entrelaçam à dramaturgia encenada.
Quando a arte se recusa a ser cúmplice
Em tempos onde tanta coisa se vê, mas tão pouco se enxerga, “A (Ré)tomada da Palavra” nos obriga a olhar. Não só para fora da janela, mas para dentro da gente.
Porque o que esse espetáculo faz no silêncio entre uma estação e outra é devolver o lugar da palavra a quem ela sempre foi negada. E isso, meu caro leitor, é mais do que teatro.
É revolução em movimento.
Onde assistir e como garantir seu ingresso
Se você sentiu esse chamado — esse toque sutil que só a arte engajada provoca —, saiba que todas as apresentações são gratuitas e os ingressos podem ser retirados pelo site do Sympla. O espetáculo acontece entre 4 de julho e 28 de setembro de 2025, em três locais de São Paulo:
Terminal Parque Dom Pedro II – Plataforma 0 (de 4 a 13 de julho)
Praça das Artes (de 7 a 9 de agosto)
Praça Franklin Roosevelt (de 18 de julho a 28 de setembro)
Para conferir os dias, horários e garantir o seu lugar nesse ônibus que carrega muito mais que passageiros carrega histórias, cicatrizes e sementes de mudança acesse:
www.sympla.com.br
ou acompanhe o perfil da Zózima Trupe no Instagram: @zozimatrupe
Não deixa pra depois. Esse não é só um espetáculo. É um espelho. E talvez você esteja prestes a se ver nele.